"Da apresentação e desejo de concretização à experiência vivida, vão palavras que trarão um ponto de vista, um olhar sobre o que aconteceu desde o início da minha participação até aos três dias de apresentações em Odemira, neste Novembro de 2022. Sob quantos pontos de vista poderia este projeto ser visto? De que forma mudaria o cerne do mesmo? Qual é o cerne, o centro, o grande objetivo? Quantos são os objetivos? Fui convidada pela Madalena Victorino para orientar sessões de aproximação ao trabalho de voz, de expressão da palavra, das vozes em conjunto em força coral e a prática vocal em redor da linguagem e da língua. Das muitas ideias inerentes ao caminho a percorrer destacava-se a vontade de que muita gente, neste ano do projeto, falasse a língua portuguesa. Outras palavras inspiravam a exploração de possibilidades: “Landing/aterrar”, “Rooting/enraizar” e “Living/viver”. Havia ainda a indicação de outras palavras inspiradoras: “A ponte (para estabelecer relações entre culturas, línguas) a viagem, o mapa, a casa, a amizade”. Assim foi. Orientei, em duas viagens a Odemira e São Teotónio, experiências em redor destes pressupostos, em jeito de exploração de possibilidades, de conjuntos vocais, de uma primeira abordagem (para alguns) daquilo que pode ser cantar em conjunto, dar e ouvir as nossas vozes (“Dena-Lena”, dar e receber) e, nas escolas principalmente, também escrever e expressar ideias, sensações e opiniões. “A menina sem voz falou! Taranpreet também, descia a máscara e pela primeira vez vi os seus dentes lindos e grandes. Taranpreet dizia palavras e curtas frases como se esquecesse de que não sabia português. A Margarida levantou-nos e fez a sua oferenda de nomes com ritmos. Nomes, ritmos e círculos: haverá herança mais antiga? Atravessa as culturas, todos os corpos. Dar e Receber. Margarida diz We are landing here, estamos a chegar. Cada um chegou com aqueles nomes que trazem o longe na boca, sons de outras geografias que começam a entrar por esta paisagem. Estamos a aterrar os nossos nomes, caídos do céu, a oferecê-los. Foi o presente que trouxemos connosco, como pedras da caverna que é a boca.” (Matilde, visão de uma sessão na escola) Paralelamente testemunhei a relação afetuosa e generosa de ambas as partes. Participantes, direção e orientadores, todos num conjunto dedicado a concretizar esta ideia, este projeto de conjunto e cruzamento humano. Carros a transportar pessoas de aldeias para São Teotónio, idas e vindas, com vontade de fazer tudo o que é possível para estarmos juntos. O espectáculo irá chamar-se BOWING BACK, porque agora seremos todos a curvar-nos uns na relação dos outros como uma resposta, um diálogo, comunicação permanente (Madalena Victorino, em email) O convite, em Setembro, foi no sentido de construir uma partitura de vozes, a ser cantada pelos participantes, a partir de canções/sonoridades das várias culturas que convergem para este projeto, constituindo uma espécie de coral integrado no espetáculo final. Escreve-me a Madalena: Este coral-manifesto sobre um modo possível de utilização da vida, é um momento único em que todo o elenco se junta para cantar, falar, usar a voz e o corpo em simultâneo. Como um mar que se ouve e se move ao sabor de uma pulsação que evolui e se transforma. Um sistema orgânico humano e vocal com solos possivelmente, mas onde a voz colectiva é o chão e a força vital da coisa. Vejo uma dança sonora de imagens, que cria um beat, uma pulsação que se vai alterando como o nosso coração faz. Há firmeza, acreditar com suavidade, combatividade, alegria muita, concentração, mistério e gravidade. E seguiam-se ideias e vontades: Queremos muito que visites as escalas musicais do oriente, como fizeste um bocadinho já, e encontres essas novas sonoridades melódicas para as cantarmos. Pensei também em procurares melodias de trabalho, oração, popular, tradicional, erudito, das diferentes culturas que temos connosco, Irlanda, Nepal, Brasil, Índia, Itália, Bangladesh, Paquistão, Portugal, Punjab e que se misturassem e não desaparecessem, se mostrem, podendo ver a sua identidade em parte e a sua fusão, mistura por outra. Usar a citação e com ela pode criar encontros com outras citações para descobrir o novo modo de utilização dessas músicas (Madalena, em email) Comecei então por procurar, pelos meus meios e pedindo aos participantes, canções dos seus países. Canções tradicionais ou aquelas que eles mais gostam de ouvir no Youtube ou a partir de outras fontes. Foram chegando a mim essas canções e fui construindo uma primeira abordagem ao grupo e a este material, com a vontade sempre presente de trazer para a sua experiência algo que acrescentasse informação e prática em redor da voz e suas possibilidades de expressão e de expansão através do grupo e no espaço (pensando já em espaço exterior onde a força conjunta das vozes seria algo predominante e importante dadas as características acústicas). Os ensaios decorriam em quartas feiras e sábados. Eu fui aos sábados, apanhava a Nusaiba (rapariga de 14 anos do Bangladesh, que entretanto se mudou para Lisboa, mas que permaneceu ligada e a participar no projeto) em Moscavide e chegávamos pelas 15h a Odemira. As histórias da Nusaiba, o que eu aprendi com ela acerca do Bangladesh, das paisagens, da família e do seu exemplo de imigração, das paisagens, da temperatura do ar. Regressávamos pelas 21.30h e chegávamos a Lisboa pelas 00h. No primeiro dia tomei o tempo que achei importante para instalar uma experiência profunda da voz, uma noção interna do som e o seu desenho exterior em forma de melodia, experiências de ritmo e de harmonias conjuntas, momentos de improvisação e a aprendizagem de uma canção. Percebi nessa primeira sessão que, em cada 3 horas, havia inúmeras tarefas a fazer: Danças, canções, músicas, conjuntos, movimentos no espaço, experiências visuais. Rapidamente foi necessário, para mim, focar-me no ensino das canções (e de versões das mesmas, adaptadas ao grupo) e no encontrar soluções para essa expressão da força conjunta, da vibração do grupo, da capacidade de estar em conjunto, de perceber a minha linguagem gestual por um lado e por outro, escutar-se internamente o grupo, de modo a prepararmo-nos para dar o melhor no tempo que tínhamos. As canções foram surgindo: Nepal, Punjab (através da voz do Shoaib), Bangladesh (à qual juntámos uma “irmã” isto é, um trecho de uma moda alentejana), Paquistão (na voz do Manpreet), canções de origens árabes e sânscrito, e as versões foram sendo construídas tendo em conta as capacidades, e ideias, minhas e do grupo. Não esquecemos a canção de embalar israelita e a “canção dos mortos” que ensaiámos ou tentámos trazer para o espetáculo mas que tivemos que abdicar... Porque é que às vezes temos que abdicar de algum material que inicialmente nos parecia tão importante? Questões estéticas, de tempo e de respeito pelo material carinhosamente cedido e porque quem trouxe nos pergunta: Então não vamos cantar a minha canção?) E porque é que é difícil abdicar dele? À partitura final juntaram-se ainda uma introdução que tinha a ver com ideias de: “nascimento das palavras”, uma “fábrica de línguas” ou ainda o “bicho da língua”, com o lançar para o espaço de escuta essa multiculturalidade presente no chamar dos nomes: Farouk, Nusaiba, Shoaib, Sara, Manpreet, Samuel, Taranpreet, entre tantos outros, nomes que se tornaram ritmo para a arrumação dos corpos. You are arriving, diz Margarida, so step forward, occupy the space and say your name like you are really here (Matilde, visão de uma sessão) Houve ainda lugar para um momento dessa tal força coral, vital e conjunta, em harmonia como tanto se quis. Nesses ensaios de 3 horas foram-se sucedendo as experiências, as repetições e aprendizagens: “a dança da Taranpreet, a dança do Punjab e do Nepal, tapetes chamuças, o passaporte, os guias da residência de estudantes, o abecedário, o rapazes do rap...”; afinando orientações, assumindo compromissos, descobrindo soluções, experimentando figurinos, escutando e gravando solos cantados, um frenesim de gente, vozes e música e movimento, sempre entusiasta e de segurada atenção e foco. Como se organizou a equipa para assegurar a organização de tamanho grupo? Como se constituíu o grupo central? o trio central: Madalena, Inês e Matilde; o elenco de 8 bailarinos profissionais; o Pedro Salvador; Como entrou a Banda Chão Maior? Como trabalharam, que relação se gerou entre espetáculo e composição musical? Que momentos elegeram para criar vocabulário musical? Que nomes deram aos temas/cenas? Que fatores foram importantes ter em conta para se conseguir construir o espetáculo no tempo destes ensaios? No fim as boleias, os carros a ir e vir com gente, sem gente, tudo entregue, em suas casas, palavras finais, pensamentos e organização para a próxima etapa... Que tipo específico de produção foi esta? Quantos voluntários estavam presentes? Chegámos, na 3ª feira da semana das apresentações a um ensaio pré-geral, no espaço ao ar livre. Estava muito frio, as decisões tinham que ser tomadas rapidamente, para ninguém ficar doente (e alguns já estavam!). A primeira vez que tudo se experimentava no espaço real: a relva molhada, a humidade a cair (pullovers, écharpes e abraços, muitos abraços), a voz a perder-se absolutamente na ponte e no espaço noturno. O grupo tão grande e espalhado pela ponte que não se sentia o todo. Percebemos: Uma situação a resolver. O que está não funciona. Um ensaio pré-geral com todo o respeito pelos participantes, a Madalena sempre a relembrar as grandes ideias, a razão de ser de tudo aquilo que estávamos ali a fazer. O grupo generoso a acompanhar. Cerca de 70 pessoas, atentas e expectantes, no impacto direto com a realidade do espaço ao ar livre. Como foi para a Madalena lidar com aquilo que não se fez? O que pensa ela nestas alturas? De que forma o elenco e a equipa base, se transformam constantemente em “equipa proteção” ? de que forma esta noção está sempre presente nas pessoas/artistas habituadas a lidar com o desconhecido e de que forma este exercício também as ajuda a enfrentar o risco, desenvolvendo capacidades e flexibilidades que possibilitam a resiliência dos lugares difíceis, e ainda proteger os outros. De que forma a direção do projeto criou já uma confiança que permite isto... A banda Chão Maior, nesta altura, já estava connosco a tocar e acompanhar toda a cena. Dia 9 de Novembro, ensaio geral. Chuva. O ensaio aconteceu no espaço do mercado, onde acontecia normalmente. Aproveitou-se o tempo que tínhamos em conjunto, simulámos espaços, imaginámos ruas, afinámos cenas, fomos ao encontro da música da Chão Maior, aproximámo-nos ainda mais do espetáculo real. Sabíamos que o dia seguinte seria o lugar para onde tudo convergia. Algumas situações não estavam resolvidas, creio que confiámos no conjunto, na vontade de todos e de cada um, na nossa capacidade de nos entendermos e na fé trazida por toda a história construída ao longo dos meses. Confiámos que a noite traria algumas soluções. E trouxe. É neste chão que as palavras vão florir (Margarida e Matilde) No próprio dia do espetáculo (10 de Novembro) não choveu. No que diz respeito ao Coro, a Madalena traz a ideia de o fazer debaixo da ponte. Experimento no local e acho que funciona (ideia de Mestra!). Havemos de passar essa informação a todos, sei que estamos preparados. Reunimos à tarde com a equipa central, revemos cada cena, afinamos soluções, imaginamos o melhor e confiamos. Ocupamos o espaço residência de estudantes, preparado com imenso carinho e gosto pela produção e por vários voluntários que entretanto foram chegando, e carinhosamente iluminado pelo Madaíl e pelo Giacomo. Cada quarto tem os nomes dos ocupantes, cabides com os figurinos, uma cadeira, um mimo. No espaço comum há lanches para todos, e são muitos. Há excitação no ar, nervosismo, maquilhagens, cabelos, lenços, casacos, vários idiomas, aquecimento de vozes, e de corpos, um entra e sai, um sobe e desce...Reunimo-nos no mercado, informamos que o coral acontece debaixo da ponte, temos que nos seguir e confiar na “Maestrina”. Sabemos o que fazer. Há inúmeras coisas a organizar, à inúmeros espaços a iluminar, há pequenas equipas em cada lugar...Que equipa técnica foi esta e como se organizou? Como pensou este acontecimento? Fazemos um aquecimento de voz e começamos todos, em círculo e em silêncio a executar a meditação primeira. Todos, numa respiração conjunta, cúmplices, protegidos e confiantes. Houve algo na língua que se solucionou em forma de som e círculo. (Matilde, visão de uma sessão) Escrevo brevemente sobre os espetáculos. Como se poderia descrever o espetáculo? Que palavras entram naquilo que aconteceu na Vila de Odemira? Que público estava? O que aconteceu em cada noite? Escrevo do ponto de vista de quem está por dentro: preparámo-nos como que para uma viagem demorada, com paragens para observar, sentir, escutar, pensar, caminhar, estar em conjunto. Não se pode ESTAR sem ser por um bom pedaço de tempo. E cada pedaço desses sei que foi desenhado com muito cuidado e intenção. Presenciei e colaborei para a construção de um edifício humano, para a criação de um bom momento de tempo feito a partir de ideias corajosas e esperançosas. Ideias de sociedade e de comunidade presente e futura. Gostávamos que houvesse uma compreensão colectiva entre todos e na direcção do público que queremos confrontar, mas também abraçar energeticamente. O mundo está a mudar e nós estamos para ficar... (Madalena Victorino, em email) Sinto e sei que este projeto é feito com o cuidado de conhecer bem todas as pessoas. Que passos foram dados para conhecer esta realidade de cada um? Quanto tempo demorou isto a fazer-se? de conhecer a sua realidade e intervir no sentido de melhorar familiar, social e politicamente aquelas situações que ainda não são potenciadoras de um “bem-estar”, ou de um “estar confortável” principalmente para aqueles que vêm de fora. Mas também aqueles que “estão dentro”, viveram um momento único de união, afeto e conjunto que dificilmente se diluirá. As novas songlines dos dias de hoje que desenham a nova terra em que podemos viver mesmo e bem. (Madalena, em email) E de que forma se traduz, agora no presente, esse sentimento de conjunto que se criou, será que é visível/sensivel? O objeto artístico que apresentámos, impactante no seio da vila de Odemira, permanecerá em todos nós, participantes e público, como um acontecimento transformador nas nossas vida. Em que aspectos transforma? Porque tudo o que aconteceu foi fruto de criatividade, de vontade, de organização, de união de forças, ideias e de um enorme respeito e generosidade de cada um, para com o outro. (...) a forma como as raízes de árvores diferentes se ajudam e comunicam debaixo da terra para sobreviverem, estarem juntas. (Madalena, em email) Com um enorme agradecimento por ter feito parte deste conjunto Margarida Mestre Dezembro 2022"
Fotografias de: João Mariano - 1000 Olhos